27 julho 2009

Artigos

"Desprendidos do Mundo"
Watchman Nee


Vimos como a Igreja é um espinho na carne de Satanás, causando-lhe grande desconforto e reduzindo sua liberdade de movimentos. Estando no mundo, a Igreja não apenas recusa-se a ajudar no seu desenvolvimento, mas persiste em pronunciar o julgamento sobre ele. E se é verdade que a Igreja é uma constante fonte de irritação para o mundo, então, do mesmo modo, o mundo é uma fonte constante de aflições para ela. E porque o mundo está sempre em desenvolvimento, sua capacidade de afligir o povo de Deus está sempre em expansão; de fato, a Igreja tem de confrontar-se com uma força no mundo hoje, diferente da encontrada em seus primórdios, quando os filhos de Deus enfrentaram aberta perseguição na forma de ataque físico exterior a eles mesmos (At 12; 2Co 11). Eles estavam sempre confrontando-se com coisas materiais e tangíveis. Hoje, o problema principal que encontram no mundo é mais sutil; é uma força intangível por trás das coisas materiais, que não é santa, mas espiritualmente maligna. O impacto dessa força espiritual hoje é ainda maior do que era naquela época. E não apenas é maior; há um elemento presente agora que não havia antes.Em Apocalipse 9, lemos sobre um acontecimento que, para o autor daquele livro, está no futuro: “E o quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo. E abriu o poço do abismo, e subiu fumaça do poço, como a fumaça de uma grande fornalha (...) E da fumaça vieram gafanhotos sobre a terra; e foi-lhes dado poder, como o poder que têm os escorpiões da terra. E foi-lhes dito que não fizessem dano à erva da terra, nem a verdura alguma, nem a árvore alguma, mas somente aos homens que não têm nas suas testas o sinal de Deus” (vv. 1-4). Esta é uma linguagem figurativa, mas a estrela caída do céu, obviamente, refere-se a Satanás, e sabemos que o abismo sem fim é seu domínio – seu armazém, podemos dizer. Apesar de esta figura aparecer no final dos tempos, está marcada por uma especial liberação de suas forças, e os homens encontrar-se-ão lutando contra um poder espiritual contra o qual jamais tiveram de lutar antes.Certamente, isso está de acordo com a realidade de nossos dias. Apesar de ser verdade que o pecado e a violência serão cada vez maiores ao final desta era, está evidente, na Palavra de Deus, que não será especificamente contra tais coisas que a Igreja terá de lutar, mas muito mais com o apelo espiritual nas coisas cotidianas. “E, como aconteceu nos dias de Noé, assim será também nos dias do Filho do homem. Comiam, bebiam, casavam, e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio, e os consumiu a todos. Como também da mesma maneira aconteceu nos dias de Ló: Comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam; mas no dia em que Ló saiu de Sodoma choveu do céu fogo e enxofre, e os consumiu a todos” (Lc 17.26-29). A questão que Jesus levantou aqui não é que todas estas coisas – comida, casamento, negócios, agricultura e construção – foram características marcantes dos dias de Ló e de Noé, mas que, nos dias finais, tais coisas serão uma característica especial. “Assim será no dia em que o Filho do homem se há de manifestar” (v. 30) – eis o ponto importante. Tais coisas não são, em si mesmas, pecaminosas; são, simplesmente, coisas do mundo. Você já tinha dado tanta atenção à boa vida quanto nos dias de hoje? Comida e vestuário estão se tornando as principais preocupações dos filhos de Deus hoje. “O que comeremos? O que beberemos? O que vestiremos?” Para muitos, esses assuntos são os que dominam suas conversas. Há um poder que faz com que você considere tais assuntos importantes; toda a sua existência clama para que você preste atenção a eles.As Escrituras nos alertam para o fato de que “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça” (Rm 14.17), nos exortam a buscar primeiro o reino de Deus e a Sua justiça e nos asseguram que todas essas coisas nos serão acrescentadas (Mt 6.33). Exortam-nos, ainda, a não andarmos ansiosos com questões de comida e vestuário, pois, se Deus cuida das flores do campo e dos pássaros do ar, muito mais não cuidará de nós, que somos Sua propriedade? A julgar por nossa ansiedade, poderia até parecer que eles recebem o cuidado de Deus e nós não!Aqui está uma questão que merece ênfase especial. Esse estado de coisas é anormal. Essa excessiva atenção ao comer e ao beber, quer seja nos extremos da subsistência ou do luxo, que caracteriza tantos cristãos em nossos dias, está muito longe de ser normal; é sobrenatural. Não estamos tratando apenas de comer e beber aqui; estamos lidando com demônios. Satanás concebeu e agora controla a ordem do mundo, e está preparado para usar o poder demoníaco sobre as coisas do mundo a fim de nos atrair para o mundo. Os fatos atuais não podem ser explicados fora desse contexto. Oh, se os filhos de Deus pudessem acordar para tal fato! No passado, os santos de Deus encontraram todo tipo de dificuldades; no entanto, mesmo em meio às pressões, podiam olhar para o alto e confiar em Deus. Todavia, nas pressões de hoje, estão tão confusos e desnorteados que parecem incapazes de confiar Nele. Oh, que percebamos a origem satânica de toda essa pressão e confusão!O mesmo é verdade quando o assunto é casamento. Nunca tivemos tantos problemas nesta área quanto agora. Há uma grande confusão, pois os jovens romperam com velhas tradições, mas carecem da direção de novos conceitos para substituir os antigos. Este fato não pode ser considerado normal, mas é sobrenatural. Casar-se e dar-se em casamento é algo totalmente sadio e normal em qualquer época, mas, hoje, há um elemento neste assunto que não é natural.É assim, também, quanto a plantar e construir, e quanto a comprar e vender. Todas estas coisas podem ser perfeitamente legítimas e benéficas, mas o poder que hoje está por trás delas pressiona os homens até que estes fiquem desnorteados e percam o equilíbrio. A força maligna que move o sistema do mundo tem precipitado uma condição hoje em que podemos ver dois extremos: o primeiro é a total incapacidade de vivermos somente com o que ganhamos, e o outro, a incomum oportunidade de juntar riquezas. Por um lado, muitos cristãos encontram-se em dificuldades financeiras sem precedentes; por outro, muitos encontram oportunidades de enriquecer, também sem precedentes. Ambas as condições são anormais.Entre em qualquer casa, nos dias de hoje, e escute qual é a conversa. Você ouvirá comentários assim: “Na semana passada eu comprei ‘isso e aquilo’, naquele lugar ‘assim e assim’, e economizei muito”. “Felizmente eu adquiri ‘tal coisa’ no ano passado, senão, teria perdido muito dinheiro”. “Se você quer vender, faça-o agora, enquanto o mercado está bom”. Já percebeu como as pessoas estão correndo de um lado para o outro, fazendo negócios freneticamente? Médicos estão estocando farinha; fabricantes de roupas estão vendendo papel; homens e mulheres, que nunca lidaram com tais coisas, estão sendo arrastados pela corrente da especulação(1). Foram sugados pelo turbilhão do mercado, fazendo-os girar loucamente. Você não percebe como esta situação não é normal? Você não vê que há um poder aqui que está escravizando os homens? As pessoas não estão agindo de forma sã; estão fora de si. Esta orgia de vender e comprar não é apenas uma questão de ganhar ou perder um pouco de dinheiro, mas trata-se de estarmos em contato com o sistema satânico. Estamos vivendo no final dos tempos, uma época em que um poder especial foi liberado e está dirigindo os homens, quer estes queiram, quer não.Então, o problema hoje não está tanto na pecaminosidade, mas no mundanismo. Quem ousaria dizer-lhe que você está agindo errado quando come e bebe? Quem desaprovaria o casar-se ou dar-se em casamento? Quem questionaria seu direito de comprar e vender? Tais coisas não são erradas em si mesmas; errada é a força espiritual que está por trás delas, a qual, por sua mediação, faz uma pressão implacável sobre nós. Oh, que despertemos para o fato de que, apesar de tais coisas serem tão simples e comuns, estão sendo usadas por Satanás para atrair os filhos de Deus para a grande rede de sua ordem mundana.“Olhai por vós, não aconteça que os vossos corações se carreguem de glutonaria, de embriaguez e dos cuidados da vida, e venha sobre vós de improviso aquele dia” (Lc 21.34). Note o termo “vida” nas palavras de Jesus. No Novo Testamento em grego, três palavras são comumente usadas para vida: zoé, vida espiritual; psiquê, vida psicológica, e bios, vida biológica. Esta última é a palavra aqui usada, aparecendo em sua forma adjetiva, biotikos, “da vida”. O Senhor está nos alertando para que não sejamos pressionados excessivamente pelos cuidados desta vida, que pertencem ao dia presente, com as ansiedades concernentes aos assuntos cotidianos da vida como comer e vestir-se, que pertencem à nossa presente existência na terra. Foi por causa de uma coisa simples que Adão e Eva caíram, e será por causa de assuntos simples assim que alguns cristãos poderão negligenciar o chamamento celestial de Deus. A questão será sempre: onde o coração está? Somos exortados a não deixar nosso coração sobrecarregado ou oprimido com essas coisas, pois nós mesmos estaremos perdendo. Ou seja, não é para carregarmos um fardo referente a esses assuntos, pois é pesado demais para o suportarmos. Devemos ter um verdadeiro sentimento de desapego dos nossos bens, seja em casa ou no campo (17.31).Portanto, percebamos quem somos! Somos a Igreja, a luz do mundo brilhando no meio das trevas. Como tal vivamos aqui.Houve uma época em que a Igreja rejeitava os costumes do mundo. Agora, ela não apenas faz uso deles; abusa deles. É claro que precisamos usar o mundo, pois precisamos dele; porém, que não o queiramos nem o desejemos. Assim, Jesus continua: “Vigiai, pois, em todo o tempo, orando, para que sejais havidos por dignos de evitar todas estas coisas que hão de acontecer, e de estar em pé diante do Filho do homem” (21.36). Iria Deus exortar-nos a vigiar e orar, se não houvesse uma força espiritual contra a qual devêssemos estar prevenidos? Não ousamos considerar nosso destino como algo certo, mas devemos estar constantemente em alerta para que, de fato, em espírito estejamos desembaraçados dos elementos deste mundo. Há coisas no mundo que são essenciais à nossa existência. Preocupar-se com tais coisas é legítimo, mas sobrecarregar-se por causa delas é ilegítimo e pode impedir-nos de desfrutar do melhor de Deus para nós.O livro de Apocalipse sugere que Satanás estabelecerá seu reino do anticristo no mundo político (cap. 13), no mundo religioso (cap. 17) e no mundo comercial (cap. 18). Neste tripé de política, religião e comércio, seu reino encontrará sua última expressão violenta. Nos últimos dois capítulos, seu reino aparece sob a figura da Babilônia, o instrumento especial de Satanás. A Babilônia parece representar o cristianismo corrompido – Roma, talvez, mas ainda maior e mais insidioso que Roma – e é por causa de seu comércio que ela será julgada. Todo o registro do capítulo 18 gira em torno de mercadores e mercadorias. Todos os que choram a queda da grande cidade, dos reis até o menor dos marinheiros, lamentam a idéia de que todo o seu florescente comércio repentinamente cessou. Obviamente, não é a religião nem a política, mas é o mercado que faz com que o espírito de Babilônia floresça outra vez, e isso é o que se lamenta em sua queda. Não queremos estabelecer enfaticamente que o puro comércio é errado, mas afirmamos, baseados na Palavra de Deus, que seu início está relacionado a Satanás (Ez 28) e seu fim está relacionado à Babilônia (Ap 18). E acrescentamos, baseados em dura experiência, que o comércio é o campo em que, mais do que em qualquer outro, “a corrupção que, pela concupiscência, há no mundo” (2Pe 1.4) implacavelmente persegue até mesmo o cristão com os mais elevados princípios, o qual, longe da graça de Deus, facilmente será seduzido para sua queda.Estamos suscetíveis à Babilônia? Os mercadores choraram, mas o céu clamou “Aleluia!” (19.1). Estes são os únicos “aleluias” registrados no Novo Testamento (vv. 1-6). Faremos eco a eles?Entramos em um campo muito perigoso quando lidamos com o comércio. Se, por força da necessidade, nos envolvermos em algum negócio puro, e se o fizermos em temor e tremor, podemos contar com a ajuda de Deus para escapar da rede do diabo. Mas se formos muito confiantes, então, não há esperança de escapar do egoísmo inescrupuloso que tal negócio produz. Então, o problema que nos confronta neste dias não está em como abster-nos de comprar e vender, de comer e beber, de casar-nos e dar-nos em casamento; o problema agora está em evitar o poder por trás dessas coisas, pois ousamos não permitir que aquele poder tenha vitória sobre nós.Qual, então, é o segredo de manter nossas coisas materiais na vontade de Deus? Certamente, é mantê-las para Ele, ou seja, saber que não estamos acumulando riquezas inúteis ou ajuntando grandes quantias no banco, mas depositando riquezas em Sua conta. Você e eu devemos ser desejosos de desfazer-nos de qualquer coisa a qualquer momento. Não importa se eu tenho de deixar dois milhões ou apenas dois reais. O que importa é se posso deixar qualquer coisa sem qualquer pontada de remorso.Não estou sugerindo, com isto, que devemos tentar dispor de tudo; não é esta a questão. A questão é que, como filhos de Deus, não devemos acumular nada para nós mesmos. Quando guardo alguma coisa comigo, é porque Deus assim falou ao meu coração; se a deixo, é pela mesma razão. Mantenho a mim mesmo dentro da vontade de Deus, e não há porque temer quando Ele me pede para dar qualquer coisa. Nada mantenho comigo por amar aquilo, mas tudo deixo, sem nenhum remorso, quando o chamado vem para deixá-lo para trás. É isso que significa ser desapegado, livre e separado para Deus.
(1) Provavelmente, os exemplos sejam muito típicos da época e do ambiente em que o autor vivia, mas o princípio é, sem dúvida, aplicável aos nossos dias, muito mais do que àquele tempo. Há hoje um grande estímulo para que todos, desde as crianças, aprendam a fazer negócios, poupança, aplicações, investimentos – é este espírito a que Watchman Nee se refere.
(Este texto é o capítulo 7 do livro Não Ameis o Mundo, de Watchman Nee. © Editora dos Clássicos. 2003.)

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